Todos os dias Poesia 


Miguel Torga

21/2/2019- data de publicação

Mar

Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia:
Eras um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...

Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
Nem aumentar nem sufocar o pranto...

Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!

Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!

Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento! 

Análise esquemática do poema Mar  

Manuel Alegre 

22/2/2019- data de publicação 

É preciso um país

Não mais Alcácer Quibir. 

É preciso voltar a ter uma raiz

um chão para lavrar

um chão para florir.

É preciso um país.


Não mais navios a partir

para o país da ausência.

É preciso voltar ao ponto de partida

é preciso ficar e descobrir

a pátria onde foi traída

não só a independência

mas a vida.



Análise esquemática do poema É preciso um país

Jorge de Sena

25/2/2019

Ode para o futuro

Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente. 


Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis. 


E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.


E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.

Análise esquemática do poema Ode para o futuro

Alexandre O'Neill

26/2/2019

E de novo, Lisboa... 

E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha. 


Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi. 


Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida? 


Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci? 

Análise esquemática do poema E de novo, Lisboa

Eugénio de Andrade 

27/2/2019

Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema. 

Análise esquemática do poema Arte dos Versos 

Miguel Torga 

28/2/2019

Orfeu Rebelde

Orfeu rebelde, canto como sou: 
Canto como um possesso 
Que na casca do tempo, a canivete, 
Gravasse a fúria de cada momento;
 Canto, a ver se o meu canto compromete 
A eternidade do meu sofrimento. 


Outros, felizes, sejam os rouxinóis... 
Eu ergo a voz assim, num desafio: 
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
 Do moinho cruel que me tritura, 
Saibam que há gritos como há nortadas, 
Violências famintas de ternura. 


Bicho instintivo que adivinha a morte 
No corpo dum poeta que a recusa,
 Canto como quem usa 
Os versos em legítima defesa. 
Canto, sem perguntar à Musa 
Se o canto é de terror ou de beleza. 

Odilon  Redon, Orfeu, c. 1903-1910

Análise esquemática do poema Orfeu Rebelde

Manuel Alegre 

1/3/2019

Canção com lágrimas

Eu canto para ti um mês de giestas
Um mês de morte e crescimento ó meu amigo
Como um cristal partindo-se plangente
No fundo da memória perturbada

Eu canto para ti um mês onde começa a mágoa
E um coração poisado sobre a tua ausência
Eu canto um mês com lágrimas e sol o grave mês
Em que os mortos amados batem à porta do poema

Porque tu me disseste quem em dera em Lisboa
Quem me dera me Maio depois morreste
Com Lisboa tão longe ó meu irmão tão breve
Que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro

Eu canto para ti Lisboa à tua espera
Teu nome escrito com ternura sobre as águas
E o teu retrato em cada rua onde não passas
Trazendo no sorriso a flor do mês de Maio

Porque tu me disseste quem em dera em Maio
Porque te vi morrer eu canto para ti
Lisboa e o sol Lisboa com lágrimas
Lisboa a tua espera ó meu irmão tão breve
Eu canto para ti Lisboa à tua espera...

Análise esquemática do poema Canção com lágrimas

Voltamos a dia 24/3

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